12.13.2010

Servidão doméstica: As cinderelas que não têm fadas madrinhas

A Servidão Doméstica, apesar da pouca atenção que tem recebido e ainda ser pouco reconhecida em Portugal, é uma das formas mais traumáticas de tráfico de seres humanos e de exploração laboral.

Hoje, Dia Internacional dos Direitos Humanos, quero recordar uma história que todos conhecemos, Cinderela ou Gata Borralheira, como era conhecida no meu tempo. Esta história mostra bem a realidade de uma vítima de Servidão Doméstica: inúmeras horas de trabalho, péssimas condições de vida, sem salário.

A Cinderela servia uma família, que a deveria ter acolhido no seu seio, ajudá-la e educá-la.... muitas vítimas de servidão doméstica também;

A Cinderela trabalhava para uma família abastada, com posses financeiras mas que a obrigavam a viver em condições desumanas, a dormir junto ao borralho da lareira... muitas vítimas de servidão doméstica também;

A Cinderela tinha uma fada madrinha, casou com um príncipe e foi feliz para sempre. As vítimas de servidão doméstica raramente são identificadas, passam anos em servidão e já não acreditam em contos de fadas.

A Servidão Doméstica é uma das formas de tráfico mais difíceis de identificar. Porquê? Porque as vítimas são muitas vezes de países terceiros, não falam a língua, estão fechadas numa casa e não têm qualquer tipo de contacto com o mundo exterior.

O que fazem? Tudo: casa, roupa, cozinha, crianças, jardim.... A qualquer hora do dia e da noite... todos os dias.

Em que condições? Péssimas: Trabalham imensas horas por dia, não recebem salário ou apenas uma quantia insignificante e, apesar das refeições que preparam diariamente para as famílias, passam muitas vezes fome, tendo apenas direito a alguns restos... se os houver. São constantemente vítimas de maus tratos, insultos, abusos e agressões.

Para quem trabalham? Muitas vezes para famílias de classe média, ou média alta e ainda para muitos diplomatas que, graças ao seu estatuto podem "importar" empregadas domésticas, e graças à sua imunidade, podem muitas vezes abusar sem consequências.

Os dois exemplos que hoje vos deixo não são retirados de nenhum livro infantil, mas da vida real (Trafficking in Persons Report 2009: Victims' Stories. Office to Monitor and Combat Trafficking in Persons)

K., 28 anos, deixou a Indonésia para trabalhar como doméstica num país do Golfo. Alegadamente, a mulher que a empregou queimou-a repetidas vezes com um ferro, obrigou-a a engolir fezes, abusou dela psicologicamente e deitou produtos de limpeza nas suas feridas abertas. Furou a sua língua com uma faca, arrancou-lhe os dentes e obrigou-a a engoli-los. Batia nos seus próprios filhos se estes a tentavam proteger e ameaçou matá-la se ela tentasse fugir. A sua empregadora obrigava-a a trabalhar imensas horas diárias, fechava-a dentro de casa, e mandou-a embora para a Indonésia antes que K. conseguisse pedir ajuda às autoridades. K. perdeu a visão num olho e em partes do seu corpo a sua carne está fundida nos sítios onde a empregadora a queimou.

Depois da mãe e do irmão de J. terem morrido, o pai enviou a filha, com apenas 8 anos, para trabalhar como servente doméstica. J. trabalhava 18 horas por dia, mas nunca foi paga. Dormia na varanda e comia as sobras.

Muitas vezes nem lhe davam nada de comer. Batiam-lhe frequentemente, principalmente quando tentava descansar. Quando a dona saía de casa, era violada pelo patrão (guardião). Não tinha autorização para sair, mas mesmo que tivesse, não saberia para onde ir. Não sabia se o seu pai ainda estava vivo. J. recebeu, anos mais tarde, assistência de uma ONG local.

Portugal não está imune a este tipo de crime. Também existem em Portugal casos de servidão doméstica, e não apenas de agora. Quantas moças não vieram das zonas mais desfavorecidas do país, das províncias do norte e do sul, como "criadas de servir" para trabalhar em casa das famílias de posses nos meios urbanos, com promessas de uma boa educação. Essa educação foi feita nas cozinhas, e como única paga um tecto para dormir e o privilégio de trabalhar para a "família dos senhores". Há sem dúvida aqui uma questão histórica e cultural que hoje em dia necessita ser olhada e abordada com novos olhos, os olhos dos Direitos Humanos.

Fonte: Jornal Expresso 10-12-2010

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